Sobrevivendo no Inferno é, indiscutivelmente, um clássico que já nasceu clássico. O que mais chama atenção neste álbum, além da marca alcançada de milhões de cópias vendidas de forma totalmente independente, é a sua inovadora narrativa envolvendo diversos temas. A obra criada por Mano brow edi rock ice blue e kl jay abordam, por exemplo, o entretenimento periférico como alternativa à indústria cultural, o encarceramento, os diversos meios empregados para controle social da periferia, a ideia de “sistema de exploração” que envolve violência, produção da pobreza, e traz uma fina abordagem dos mecanismos de controle social.
Ao contrário do que dizem as críticas completamente desinformadas e sem referências, o álbum não conta com “melodias simples com acréscimo de bateria”. As produções possuem colagens dos principais grupos de rap do brasil, e as bases instrumentais abrangem o suprassumo da música negra estadunidense com samplers que passam pelas bandas The Isley Brothers e Bar Keys, ressoam os sintetizadores oitentistas do Mtume, o soul espiritual e secular de Curtis mayfild, as mágicas bases instrumentais do trompetista tombrowne, e o poderoso talento composicional de Isaak Heyes, cuja influência musical sobre os exigentes ouvidos negros o fez ser conhecido como o Moisés Negro, uma referência à liderança do personagem bíblico que organizou a libertação dos os hebreus da escravidão.
Neste sentido, Sobrevivendo no Inferno é uma obra absolutamente coerente quanto à sua inspiração racial e tanto quanto a inspiração espiritual: as melodias, a capa, a contracapa, o encarte e as letras são carregados de espiritualidade. Mas não se trata da espiritualidade maniqueísta. Neste álbum, o bem e o mal coexistem no mesmo contexto, no mesmo ambiente, nos mesmos corpos. Tal como na realidade concreta, versículos bíblicos e crucifixos se misturam com armas, o tráfico se confunde com Igrejas evangélicas, os religiosos de bem manifestam ódio e preconceito, o inferno e a salvação se apresentam um uma vigorosa semelhança.
O álbum é impactante desde sua faixa de abertura, quando apresenta uma versão da magnífica oração para São Jorge composta por Jorge Ben no auge de sua criatividade alquimista; sendo seguida por uma narrativa transofrmada de Gênesis que pavimenta o terreno para o clássico Capítulo 4 Versículo 3 do Livro, quase bíblico de Racionais MCs. O disco percorre a narrativa do orgulho preto, da violência pacífica com semelhanças messiânicas, das contradições entre paz e guerra, demonstra a potência cultural da perifirefia onde Deus e o Diabo se fundem e se contradizem em praticamente todas as letras.
O versículo do livro biblico de Salmos escrito na capa e na contracapa, no qual o profeta anda pelo vale da sombras da morte encontrando refúgio, é a mais coerente epígrafe deste álbum. A intensa caminhada entre os dramas e felicidades vividas por todos os jovens de periferia termina com a revolucionária “Fórmula Mágica da Paz”, canção que acalanta o imaginário e abre a possibilidade de viabilização dos sonhos, temática quase inexistente no rap da época, porém unânime no RAP contemporâneo.
Sobrevivendo no Inferno é um daqueles álbums que equivale a, pelo menos, dois semestres de faculdade em ciências humanas. Tanto é que, hoje em dia, esta obra faz parte do conteúdo programático dos vestibulares das maiores universidades do país.
Vinícius Oliveira Santos (DJ Xegado)
é doutor em Sociologia, produtor cultural e discotecário.
@viniciusxegado