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Sérgio Ricardo

Quando enfrentou a plateia e quebrou seu violão no palco do festival de música da TV Record, em 1967, Sérgio Ricardo já havia definido um capítulo significativo da Bossa Nova e se firmado como compositor e músico talentoso. Além disso, ele já havia registrado sua incursão pelo rádio, pela televisão, pelo cinema e pelo teatro; no cinema, por exemplo, convém destacar a criação de trilhas sonoras memoráveis, tais como Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, mas também a produção de seus próprios filmes: Menino da calça branca e Esse mundo é meu.

Sem a pretensão de seguir o seu itinerário artístico, cuja riqueza de detalhes não caberia aqui, é importante resgatar o ano de 73, quando ele lançou o álbum Sérgio Ricardo (Continental). Com autoria de Caulos, artista plástico natural de Araguari (Minas Gerais) e radicado no Rio de Janeiro, a capa desse disco acentuou o compromisso do músico contra a ditadura militar, que se instaurou no Brasil com o golpe de 64 e que impôs – nunca será suficiente lembrar! – uma direção política com fortíssima repressão, perseguições, prisões arbitrárias, tortura e assassinatos.

Antes de tudo, é curioso notar que ao rememorar o episódio do festival da TV Record, cuja zombaria do auditório não permitiu expressar a mensagem de Beto Bom de Bola, a foto de Sérgio Ricardo escolhida para a capa do disco parece consolidar o seu olhar insubmisso frente a qualquer tentativa de apagá-lo. Mas o que atrai a atenção é o fato desta imagem apresentar um recorte pontual na região da boca; em um primeiro lance de olhos, o espaço em branco deixado pelo recorte se assemelha a uma fita sobreposta à boca do músico, como se fosse uma tarja branca. Porém, observando com mais cuidado, logo abaixo da moldura, lado direito da capa, encontramos uma figura dos cartuns de Caulos em fuga com a parte destacada sob um dos braços. Considerando o recrudescimento dos anos de chumbo, é possível concluir que essa proposta gráfica traduz, com bastante engenhosidade, uma ferida lastimável do contexto: a censura.

Se essa parte da apresentação do disco denuncia uma voz sufocada e, até mesmo, sequestrada, é necessário acrescentar que ao acessar a parte interna da capa, nos deparamos com uma bela surpresa: aquele fugitivo anônimo, ilustrado por Caulos, se encontra sentado e com o fragmento da foto diante dos olhos; vemos um balão de voz iniciar a projeção no canto da boca e preencher a outra parte da capa interna, apresentando, para o público que adentra esse universo, o registro das letras de músicas do álbum.

Aqui, em especial, uma canção célebre de Sérgio Ricardo dialoga diretamente com a capa em questão. Em Calabouço, música que abre esse disco de 73, o compositor concebe estrategicamente um jogo entre a palavra do título e a expressão “Cala boca moço”, repetida exaustivamente no decorrer de sua “falação”. Sabemos que a letra remete a um dos episódios marcantes da opressão militar: o assassinato covarde do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, que ocorreu no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, em 68. De volta à letra da música, a genialidade do compositor consiste justamente em descrever a sua encruzilhada, a sua situação dramática, em uma época perigosa para cantar, para preencher a alma de vida e, como ele mesmo diz, para abrir as “portas do mundo”. Devido a essa iniciativa de cunho político, Sérgio Ricardo e Caulos foram intimados para prestar esclarecimentos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), mas eles não foram categoricamente silenciados pelos militares. Ainda no ano de 73, em missa realizada na Catedral da Sé, em São Paulo, Sérgio Ricardo cantou Calabouço para uma multidão que prestava homenagens a outro estudante vítima da repressão. Não podemos esquecer esse “grito”! Vamos juntos!

Fábio Coelho da Silva

é professor do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia e colecionador de discos de vinil.

@fabiocoelho1979

Sérgio Ricardo

Álbum do cantor, compositor e artista João Lufti, popularmente conhecido como Sérgio Ricardo. Produzido nos fundos da casa do artista, na Urca (RJ), com a colaboração dos amigos que integram o disco. A capa feita por Caulos, mostra o cantor com a boca coberta por uma tarja branca, o que levou a uma intimação do DOPS e a proibição de execução pública das músicas. As fotos da contracapa são de Sérgio Bernado e a crítica elaborada para um anúncio pago no Jornal do Brasil de 23/11/1972 é do produtor cinematográfico Otto Engel. O disco tem 10 faixas e 42min22s de duração.

Lançamento1973ArtistaSérgio Ricardo, Piri Reis, Cássio Tucunduva, Franklin da Flauta, Fred Martins e Paulinho CamafeuGravadoraContinental DiscosGravaçãoSOMIL com produção de Sérgio RicardoGênerosMPBCompartilhar
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