Meus pais se casaram na década de 1960. Um casal muito apaixonado e intenso. Desde que me entendo por gente, ouvia Roberto Carlos em casa, como um sinal do romantismo deles. Todos os anos, seu Rolando Zenon presenteava Dona Lúcia com o LP do Roberto. Uma espécie de tradição familiar. No noite de Natal, mamãe sempre abria o último disco do Roberto. Era bacana olhar a capa, o encarte, ouvir as músicas.
Minha mãe sempre foi fã do Roberto. Depois que meu pai morreu, nós assumimos a tradição e passamos a dar o LP para ela. Depois o CD. Não me lembro a quantos show do Roberto fui quando criança e mesmo adulta. Assistir a um show dele é uma experiência única. Quer você esteja nas primeiras filas das cadeiras, torcendo para ganhar uma rosa, quer esteja em uma arquibancada de cimento, nos lugares mais baratos.
Roberto Carlos é parte da história da minha família. Minha mãe provavelmente guarda todos os álbuns e ainda deve colocá-los para tocar, assim como assiste aos especiais da televisão, tirando o fone do gancho e sem se deixar ser interrompida. Às vezes assisto do lado de cá só para me sentir perto dela.
Um dele é o vinil Roberto Carlos – 1971, que completou 50 anos em 2021. Trata-se do 11º álbum daquele que foi o Rei da Jovem Guarda e depois o Rei da música romântica brasileira.
Gravado pela CBS, traz canções icônicas do Rei, como Detalhes, Amada Amante e Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos, composta para homenagear Caetano Veloso, na época vivendo no exílio. Outras faixas são desconhecidas do grande público, como a divertida “I love You”, em que ele emposta a voz para parecer um cantor clássico do rádio daqueles tempos.
A capa, é uma das poucas em que a imagem de Roberto aparece em forma de uma gravura e não de uma fotografia. A obra é do ilustrador Carlos Henrique Lacerda. Aliás, as capas de seus discos são marcadores interessantes da passagem do tempo, da moda, dos cabelos.
O LP 1971 marca uma espécie de transição entre as músicas despretensiosas da jovem guarda e o cantor romântico que se fortaleceria nos anos seguintes. Mas tem também o Roberto que usa suas letras para uma crítica política onde a palavra é mais forte que o revólver. E o homem religioso, devotado ao simbolismo de Jesus e Maria, presentes em algumas de suas canções mais famosas.
Aqui, vamos abordar a mensagem religiosa da faixa 1, lado 2, nomeada “Todos estão surdos”. A letra, se escrita em 2022, quando presenciamos a invasão da Ucrânia pelos russos, parece extremamente atual: “Outro dia, um cabeludo falou / Não importam os motivos da guerra / A paz ainda é mais importante que eles. (…) Muita gente não ouviu porque não quis ouvir / Eles estão surdos”. Sim, eles estão surdos. O cabeludo da letra é o Jesus Cristo hippie, perambulando pelas estradas pregando sua imagem de paz. Que também foi tema de uma outra canção do Rei, gravada um ano antes.
Escrita por Roberto e Erasmo, a letra traz a crença no retorno de Jesus, salvador dos homens, que precisa ser ouvido mais uma vez, em sua mensagem de paz, esperança e amor. A religiosidade também aparece na faixa Traumas, em que ele resgata memórias de menino, da relação com o pai e fala nos anjos que estiveram presentes na infância e depois se foram, deixando o menino só com sua dor. Um verso dessa letra virou uma espécie de frase motivacional dos tempos modernos: Meu pai um dia me falou / Pra que eu nunca mentisse / Mas ele também se esqueceu / De me dizer a verdade / Da realidade do mundo / Que eu ia saber / Dos traumas que a gente só sente / Depois de crescer. Versos que voltam em 32 dentes, dos Titãs, no álbum Õ Blésq Blom, de 1989.
Ouvir Roberto Carlos 1971 é uma experiência interessante. A gente conhece praticamente todo o repertório e provavelmente já enviou a letra da música ou mesmo um vídeo para aquele crush de cabelos encaracolados ou aquele de quem a gente lembra dos detalhes. A obra do Rei é insuperável. Gostem ou não, ele deixa uma marca importante na discografia brasileira. Seus álbuns eram aguardados ansiosamente pelo público. Nas cidades menores, muitas vezes era necessário encomendar. Na casa da minha família, ouvir seus discos era tradição, a vizinhança ouvia por tabela. Acredito que ninguém estava surdo. E que alguns, como eu, tiveram a semente da admiração por esse grande compositor e intérprete semeada na alma.