Cada pessoa desperta em si um dos cinco sentidos que mais tem a ver com o seu propósito de vida. No meu caso, foi o da visão. E, claro, da construção de imagens. O que me faz pensar sobre o impacto que uma imagem pode ter na vida de uma pessoa. Uma das capas de disco mais malucas que eu já vi foi criada quando eu tinha apenas quatro meses. E só fui conhecê-la somente muitos anos depois. O disco ainda era atual. A capa ainda era atual. E ainda é. Até hoje, quando o disco completa 50 anos de sua criação.
Estou falando do Jardim Elétrico dos Mutantes. Que nome de disco incrível. Que grupo incrível. Quanta coisa fabulosa foi produzida em meados do século passado e são consumidas até hoje como se tivessem saindo do forno. O movimento do Tropicalismo foi uma delas. E o disco com a força revolucionária do grupo se movimentava por essas ondas tropicais.
A capa do disco é o sabor sonoro e brasileiro de uma imagem para ser contemplada. Uma ilustração meio indecifrável de algo que parece ser uma planta carnívora, degustando outras plantas, pés e mãos humanos, algo meio antropofágico.
O desenho psicodélico da capa foi feito por Alain Voss, artista visual franco-brasileiro. Um pé de cannabis, uma cabeça aberta rompendo com os padrões da época, mordendo um caule com espinhos e saindo de dentro de um botão de rosa vermelha uma serpente, vermes, cipós subindo, uma miragem. As cores e formas foram usadas de maneira a causar um grande impacto visual. Os Mutantes foram uma das raízes mais esquisitas da música brasileira e, por molecagem pura, subverteram tudo neste álbum.
Era essa a pegada, com o tom do deboche e do rock´n roll. Jardim Elétrico foi o quarto álbum da banda, de 1971. Hoje está na lista dos 100 melhores discos da música brasileira.
As músicas, faixa a faixa, são atemporais e, definitivamente, verdadeiros clássicos.
O disco abre com as famosas distorções da banda, além de palmas como parte da percussão e um fantástico trabalho de contra baixo. “Benvinda” é uma faixa ridícula e deliciosamente brega. “Tecnicolor” e a levada bem hippie, mostra como a banda gostava de misturar blocos de ritmo e instrumentalização diferentes. A chacota espanhola de “El Justiciero” propositalmente cantada em um engraçado ítalo-portunhol, traz castanhola, violão flamenco e metais de música mexicana, uma das muitas brincadeiras da banda com outros gêneros. A irreverência, marca predominante da banda, em “It’s Very Nice pra Xuxu” é um flerte com algumas canções americanas, uma faixa com “paixão de diva” nos vocais.
“Portugal de Navio”, com sua intenção cômica, é outra interessante mistura de rock com jazz, e baladas brasileiras dos anos 40. Da mesma forma em que se curte uma pegada a la Bossa Nova em Baby na versão em inglês.
O disco todo é carregado de um humor sarcástico característico da banda, que usou e abusou do psicodelismo, art rock e arranjos orquestrais de Rogério Duprat.
Jardim Elétrico é bom de ver. É bom de ouvir!
Alquimia pura! Nem era preciso tomar LSD para viajar nas músicas do repertório.
Beto Oliveira
Fotógrafo de shows, teatro e dança desde 1987 e colecionador de discos de vinil.
@betoclick