Se tem algo que a música faz em todas as pessoas, ou, pelo menos em quase todas, no planeta inteiro, é acender memórias afetivas. E não raras vezes são memórias determinantes para o futuro de quem as têm. Eu era uma criança de sete anos quando foi lançado o espetáculo Calabar, musicado por Chico Buarque e Ruy Guerra e depois transformado em disco. Mesmo sendo uma criança, morando na provinciana, pequena e conservadora Uberlândia, sentia que havia uma coisa estranha no ar. E boa parte dos sinais para este sentimento vinham da música e da arte. Calabar, o espetáculo e o disco dele decorrente, foi censurado pela ditadura militar. Como as notícias eram muito filtradas naqueles tempos, assim como a própria arte, a gente ouvia apenas os rumores de repressão e censura, mas dava para entender que elas aconteciam, só não sabíamos como e o por quê.
Lembro de ouvir muito Chico Buarque nas rádios. Eram tempos em que se ouvia muito rádio. Lembro, inclusive, de ouvir na rádio da mercearia, quando minha mãe me mandava buscar pães, aqueles baguetes embrulhados em um papel pardo, e lá estava tocando as músicas da peça censurada. O curioso é que elas nunca pararam de tocar. Não mais com a frequência e a popularidade das rádios, mas sempre marcando presença em algum lugar, em alguma FM, em alguma festa, em algum show. O disco trouxe clássicos que se perpetuaram nos gostos mais refinados. O repertório do espetáculo permaneceu, como toda a obra de Chico, por seu caráter atemporal e a sua consistência artística.
Várias canções do espetáculo e do disco estão aí até hoje e fizeram enorme sucesso em regravações de outros intérpretes, como Ney Matogrosso e Maria Betânia, entre outros. São músicas como Ana de Amsterdan, Bárbara, Tatuagem, Fado Tropical, Não existe pecado ao sul do Equador, Vence na Vida Quem Diz Sim, essa última uma das abortadas pela censura da época. Quem não a conhece, pode imaginar pelo título a razão da indignação dos censores.
O espetáculo, assim como o disco, tinha o subtítulo de O Elogio da Traição. A peça Calabar O Elogio da Traição foi cancelada às vésperas da estreia, isso depois de esperar anos pela liberação. Com o disco não foi diferente. A liberação só aconteceu depois de muitas mudanças radicais. A capa estampava a foto de um muro pichado com o nome Calabar e passou a ser branca. O título ‘Chico canta Calabar’ também foi trocado para ‘Chico canta’, pois as iniciais CCC lembravam o Comando de Caça aos Comunistas, o mesmo que reprimia em nome da censura. Apenas as versões instrumentais de ‘Vence na vida quem diz sim’ e ‘Ana de Amsterdam’ foram liberadas. E a canção Bárbara também teve verso suprimido, por revelar o amor entre duas mulheres.
Calabar, o Elogio da Traição foi a terceira experiência teatral de Chico Buarque de Holanda. E, nas investidas anteriores, ele já havia experimentado o dissabor da censura e da repressão. O primeiro espetáculo por ele musicado foi Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, em 1965, e dois anos depois, e emblemática Roda Viva, protagonizada por sua esposa Marieta Severo, no Rio de Janeiro. A remontagem de Roda Viva, em São Paulo, se tornaria um símbolo da resistência contra o regime militar. Mais de 100 integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram o teatro, espancaram os artistas e depredaram o cenário. No dia seguinte, o próprio Chico esteve presente no protesto contra a censura da peça. E, segundo ele, a intervenção militar naquele teatro foi tão atabalhoada, que o alvo da ação era outra peça, em uma sala vizinha. E depois de Roda Viva, veio Calabar. Dois anos depois de Calabar, outro absoluto sucesso que também marcou presença na história do teatro brasileiro, Gota D´Àgua, seguida de outros sucessos estrondosos como Ópera do Malandro, O Grande Circo Místico, entre outras. A montagem de Calabar foi uma das mais caras produções teatrais da época, custou cerca de 30 mil dólares e empregava mais de 80 pessoas.
O disco que se originou da peça foi retirado das lojas pelos militares. No ano seguinte, a gravadora Philips o relançou mudando a imagem para um rosto do cantor e substituindo o nome do disco, originalmente Chico Canta Calabar, por simplesmente Chico Canta. O disco, assim como a peça, teve vários trechos censurados.
Nós, interioranos da pequena Uberlândia, jamais imaginávamos este turbilhão de emoções envolvendo tanto a peça como o disco. De longe, o que nos chegava, era apenas a música. quase sempre pelas ondas do rádio e, em algumas ocasiões, também por meio da telinha de uma ainda incipiente televisão brasileira. Mas, tudo aquilo era bastante para mexer com o nosso imaginário. E nos inspirar. Nos anos que se seguiram toda a obra de Chico Buarque, sobretudo aquela produzida para o teatro, me inspiraram em minha trajetória como produtor cultural, e me trouxeram experiências emocionantes ao trabalhar com algumas das várias remontagens, como o musical Gota D´Água, entre outras. Além de conhecer e ouvir os depoimentos de pessoas que viveram essas situações nos anos de chumbo da política brasileira, como do ator Renato Borghi relatando o horror vivido quando houve a invasão militar no espetáculo Roda Viva.
Eu não tive o disco Chico Canta Calabar em mãos. Anos depois, já adulto, cheguei a ter o Chico Canta, essa versão com as alterações impostas pela Ditadura. Felizmente, ao menos por enquanto, a edição original foi restabelecida e já é conhecida do grande público.