A capa do disco de estreia do Secos e Molhados é uma unanimidade. Aparece com mérito em todas as seleções de melhores capas de discos do Brasil e algumas do mundo. São quatro cabeças de membros da banda dispostas em uma mesa em pratos, ou seja, prontas para o consumo ao lado de vinho, cereais, linguiça. Aquela miscelânea gastronômica que nos remete exatamente ao nome da banda e título do álbum, os velhos armazéns de secos e molhados. Aquelas mercearias de esquina que vendiam de tudo. Muito mais tarde eu fui aprender bastante sobre a capa e a banda mas a minha primeira visão daquele álbum aconteceu sob o olhar mágico da criança de oito, nove anos de idade, que eu era. Nossos olhos já estão tão acostumados com os milagres do photoshop e da computação gráfica que aquela capa hoje talvez não fosse tão especial. Mas como toda boa mágica, a capa iludia a nossa percepção sem deixar qualquer dica. Hoje a gente sabe que aquilo não era uma mesa. Os membros da banca estavam agachados debaixo de uma prancha de madeira com buracos para enfiarem suas cabeças. Hoje a gente sabe que os pratos tinham furos para encaixarem os pescoços e o recorte cuidadosamente escondido atrás de cada um deles. Hoje a gente sabe como a mágica foi feita e o fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues, autor do trabalho foi aclamado por essa obra que tem produção e iluminação impecáveis. Mas em 1973, o ano de lançamento do disco, a imagem era de um realismo impressionante., quanto mais para uma criança. Era até um pouco perturbadora. Não havia sangue, não há marca de violência, aquelas quatro pessoas de olhares apáticas estão vivas? Toda a dubiedade andrógena que fez o Secos e Molhados aparecerem no cenário careta daqueles anos de chumbo da ditadura, deixando o país ao mesmo tempo perplexo e apaixonado está traduzido na capa. Homens maquiados no Brasil de 1973. Mas espera. O cantor é homem, a voz é feminina. Lá fora, especialmente na Inglaterra a onda glamm, ou glitter, já vinha apagando essa linha divisória entre gêneros. David Bowie já se maquiava. Nos Estados Unidos, embora muita gente ache que o Kiss veio depois, eles também estavam se maquiando nos shows, em pequenos pubs em Nova York. Aliás muito antes disso, em 1967, Arthur Brown na Inglaterra pintava a cara de uma forma muito parecida com a do Ney. Não cabe aqui a palavra plágio, não cabe discutir quem imitou quem, melhor dizer que é o espírito do tempo. Tão forte e tão impossível de ser detido que veio se impor até na caretice brasileira de 1973. Mas dentro daquela que é uma das melhores capas da história da MPB havia também um dos melhores conjuntos de canção. Sangue latino usando a alma cativa dos países do subcontinente, quase todos dominados por ditaduras militares; Rosa de Hiroshima; Fala. Os arranjos eram lindos, as vezes complexos, mas também nus de instrumentos com muito espaço para piano, baixo, violão e vozes. Sim, porque o Secos e Molhados tinham a voz de Ney Matogrosso que gravaria apenas dois discos com a banda antes de partir para uma rica carreira solo mas trazia também os vocais e harmonia de João Ricardo compositor da maioria das músicas e de Gérson Conrad. Os dois dividem a capa lá, decapitados com o Ney. Quarta cabeça é do baterista Marcelo Frias que acabou abrindo mão do protagonismo para ficar só na bateria. Olhando em retrospecto eu vejo que boa parte do meu gosto musical nasceu dessa semente. E para usar uma palavra da época, eu desbundei de vez quando no ano seguinte convenci meus irmãos mais velhos de me levarem para ver Secos e Molhados no ginásio do Uberlândia Tênis Clube (UTC). Algumas décadas mais tarde, nos bastidores do programa Altas Horas, eu tive a chance de conversar calmamente com Ney Matogrosso que é a calma em pessoa. Eu disse para ele, Ney eu vou ter que te tietar. Secos e Molhados foi o primeiro show que eu vi na vida e a performance de vocês com aquela sensualidade e ousadia toda, mudou a minha vida. Uberlândia, 1974, no ginásio de telhas metálicas… eu disse isso mesmo! E o Ney, aquele foi nosso último show. A gente voltou de uma turnê no México, cumprimos umas datas no interior de Minas e nos separamos. Toda vez que eu me lembro disso e vejo o tamanho da minha sorte, eu boto aquele primeiro LP do Secos e Molhados para rodar e ele sempre me reconecta com tudo que eu mais gosto na música. Ousadia, lirismo, peso e leveza na medida certa. Capacidade de surpreender. Diversidade. Palavra muito importante para a vida.
Maurício Ricardo
é jornalista, cartunista, músico e empresário. Pioneiro na Internet brasileira, criou o website de animações Charges (hoje canal no YouTube) e a banda Os Seminovos, onde atuou entre 2006 e 2011. Atualmente dedica-se aos desenhos animados, análises políticas no canal “Fala, MR” e à escola de programação e robótica Techers, que criou com sua esposa Danielle Akemi.
@omauricioricardo