Foi numa roda de samba há anos atrás, na verdade um tributo a mulheres sambistas, que eu pude perceber a potência de uma criação artística, quando toda gente ali presente se levantou a cantar como em um rito de celebração. E essa experiência me remeteu à casa da minha avó materna. Onde aos finais de semana a família se reunia e o toca-discos a todo vapor, com os mais variados gêneros musicais. Não faltava um bom samba na voz de mulheres como Alcione, Eliana de Lima, Leci Brandão, Elza Soares e ela: Clara Nunes.
A mineirinha nascida em Cedro, a época pertencente ao município de Paraopeba no interior das Minas Gerais, hoje chamada Caetanópolis.
Clara Francisca Gonçalves, que seguiu para Belo Horizonte ainda jovem devido a morte dos pais.
Cada vez mais envolvida pela música foi para o Rio de Janeiro, deixando o trabalho como tecelã e se dedicando a arte.
Clara sempre teve na música o seu alento, inspirada principalmente pelas grandes cantoras da rádio da época, como Elizeth Cardoso e Dalva de Oliveira.
E essa mudança para o Rio fez total diferença no que geralmente ela apresentava. A Clara foi agraciada pelo samba e pela religiosidade afro- brasileira. Questões tão presentes desde então em suas obras: das vestimentas brancas aos adereços em saudação aos Orixás. Como em Banho de Manjericão, composta por João Nogueira e Paulo César Pinheiro, presente no 12º Álbum intitulado Esperança, lançado 1979, gravado pela Emi- Odeon.
É foi exatamente essa música que ouvi em coro naquela roda de samba e que me fez pensar no poder de uma obra artística e nos seus encantamentos.
“Eu vou me banhar de manjericão
Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão
E vou voltar lá pro meu congado
Pra pedir pro santo
Pra rezar quebranto
Cortar mau olhado
E eu vou bater na madeira
Três vezes com o dedo cruzado
Vou pendurar uma figa no aço do meu cordão
Em casa um galho de arruda que corta
Um copo d’água no canto da porta
Vela acesa e uma pimenteira no portão …”
Ah! É uma verdadeira evocação a cura e a proteção.
E como não citar a capa deste álbum? Banhada no pensamento artístico crítico, que conduzia Clara em suas pesquisas. Fotografada por Wilton Montenegro, de mãos dadas a duas crianças negras no Morro da Saúde no Rio de Janeiro. E na contracapa os seguintes dizeres:
“Geralmente meus discos anteriores são batizados com o nome de uma música do próprio disco. Nesse porém, com as muitas fotos que fiz para a escolha da capa, esta me causou especial emoção e fez brilhar na minha cabeça esta palavra, esperança. Era uma tarde de terça-feira, três de julho, no morro da Saúde, Rio de Janeiro. Os olhinhos inocentes e mãos firmes dessas crianças nos mostrando a resistência futura. Através deles a esperança renascendo de novo e permanecendo viva diante de nós. Esperança num prosseguimento de luta. Na verdade, que emana do sofrimento, da pobreza, da arte da gente dessa minha terra. Talvez um deles seja um líder do povo, um homem da caridade, um libertador, um mártir talvez, talvez um músico. Nisso, a minha fé, as minhas rezas, os meus amuletos e essa minha persistente esperança.”
E a Clara ainda continua…
“…E é ao músico, que pode ser um deles, que eu dedico este disco, na pessoa do guitarrista Hélio Delmiro, um dos maiores do mundo, que comera 10 anos de trabalho comigo.”
Que linda homenagem ao Hélio Delmiro, o mago das cordas e a esperança em dias melhores.
A guerreira mineira filha de Ogum com Iansã fez com que a palavra esperança percorresse todo o álbum retratando alegrias, dores, denúncias, celebrações e festividades, numa mistura intensa, assim como a vida dessa mulher.
O disco tem como última faixa do labo B, Feira de Mangaio, que mostra o quão versátil era essa intérprete; em um forró baião composto por Sivuca e Glorinha Gadêlha, nos apresentando as feiras como lugares repletos de sonoridades, cheiros, sabores e cores.
“Fumo de rolo arreio de cangalha
Eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho broa e cocada
Eu tenho pra vender, quem quer comprar?…”
Clara partiu muito cedo em 1983 antes de completar 41 anos, mas deixou uma rica e potente obra artística, além dos seus posicionamentos em relação a identidade de gênero, etnia e credo.
Quebrou mitos, tabus e se mantém entre as maiores artistas brasileiras.
Ela foi entre outras coisas, um fenômeno em vendagens.
“Eu vou me banhar de manjericão
Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão
E vou voltar lá pro meu congado
Pra pedir pro santo
Pra rezar quebranto
Cortar mau olhado
E eu vou bater na madeira
Três vezes com o dedo cruzado
Vou pendurar uma figa no aço do meu cordão
Em casa um galho de arruda que corta
Um copo d’água no canto da porta
Vela acesa, e uma pimenteira no portão…”
Viva o samba! Viva Clara Nunes!
Eparrei Oyá!
Rubia Bernasci
é uma artista envolvida em múltiplas áreas: atuação, fotografia, cinema, produção e direção.
@rubiabernasci