“E você, ouvinte incauto, que no aconchego de seu lar, rodeado de seus familiares, desafortunadamente colocou esse disco na vitrola… Você, inimigo mortal da angústia e do desespero, esteja preparado! O pesadelo começou…”
Falando desse jeito, aos seus próprios ouvintes e sobre sua própria materialidade, Clara Crocodilo é um disco, sim, mas também um disco que é personagem do seu próprio disco. A metalinguagem é vertiginosa, sobretudo na faixa que dá nome ao álbum.
A primeira vez que ouvi “Clara Crocodilo”, eu estava em uma sala de aula na USP, a mesma universidade que Arrigo Barnabé frequentou, na aula do professor Walter Garcia. Me lembro de ficar perturbada com a personagem marginal, como dizia o professor, da Clara Crocodilo. Ela é um monstro que sai do disco, mas também que mora em mim mesma. Devo então ajudá-la, como me implora o narrador da canção? É um homem, uma mulher, ou uma terceira opção? O LP Clara Crocodilo canta outros personagens insurretos, como o homem que morreu por pensar, na faixa “Infortúnio”, e expõe assim as feridas da ditadura civil-militar no Brasil.
Considerado um marco inicial da Vanguarda Paulista, o LP foi lançado em 1980, com produção independente de Robinson Borba. A coisa foi tão indie que o pagamento aos músicos foi em long-plays, por isso se conta que eles saíram por aí vendendo os discos. Os músicos e as musicistas, aliás, não eram poucos: a banda Sabor de Veneno, que assina o álbum com Arrigo Barnabé, era composta por treze pessoas: Regina Porto, Bozo Barretti, Paulo Barnabé, Gi Gibson, Rogério, Otávio Fialho, Ronei Stella, Chico Guedes, Baldo Versolatto, Mané Silveira, Félix Wagner, Suzana Salles e Vânia Bastos. Adicionam-se a essa lista arranjos de Itamar Assumpção e vocais de Tetê Espíndola. Os dois já eram íntimos do repertório do LP, pois tinham tocado com o grupo no ano anterior.
As canções foram compostas por Arrigo e outros parceiros durante a década de 1970, mas o ano de 1979 foi decisivo. Duas das canções do LP tinham sido apresentadas por Arrigo e banda no Festival Universitário da MPB, em 1979 na TV Cultura: “Infortúnio” e “Diversões eletrônicas”, que fizeram bastante sucesso. Perguntado sobre as suas inspirações para essas canções, Arrigo afirmou que, muito mais que outras músicas que ele tinha ouvido, foram as histórias em quadrinho que o motivaram a compor. Will Eisner, criador do Spirit, os gibis da Marvel, especialmente Homem-Aranha, e os quadrinhos do Luiz Gê são os exemplos que ele dá na época. Realmente, as canções são muito narrativas, visuais, as letras são cheias de avisos luminosos, personagens do submundo, transições que têm algo do ritmo das HQs.
O Luiz Gê, o Arrigo conheceu em 1970 quando migrou de Londrina pra São Paulo, e vai ser crucial para o projeto do encarte. É ele quem desenha a capa inesquecível: o olho do crocodilo em close, os seus dentes na contracapa, o título sanguinolento. Mas o melhor de tudo, pra fechar, é a reflexividade do projeto gráfico. Porque o olho do crocodilo da capa se repete no miolo da bolacha, e a gente teme aquela Clara Crocodilo ali, presa, mas nos espreitando, pronta pra atacar, ávida pra que as presas sejamos nós, seus ouvintes, seus irmãos.
Patrícia Anette
é professora, revisora de texto e pesquisadora de literatura e canção. Sua dissertação de mestrado se intitula: "Três ensaios sobre a tropicália de Tom Zé" (2018).
@patineter