História do disco de vinil
por Sérgio Sganzerlla
A partir de minha experiência como assistente de direção musical de uma grande rádio de São Paulo no final da década de 70 e início da década de 80, convivi com a história da música e com muitos músicos historiadores. Nomes como Paulinho da Viola que passava horas escutando e anotando as histórias da velha guarda da Portela para poder resgatar os caminhos do samba, Adoniram Barbosa que andava no bairro do Bexiga pelos bares encontrando-se com os “nonos” e escutando como o samba chegou ao bairro, conversas generosas com Egberto Gismonti sobre os caminhos da música brasileira no cenário internacional, risadas com Hermeto Paschoal sobre composições. populares da música brasileira, explicações do Mestre Adamastor, diretor de bateria na época da Escola de Samba Acadêmicos do Tucuruvi, no bairro de mesmo nome, em São Paulo sobre as acelerações das batidas da bateria, além de um bate papo no domingo de manhã com Arrigo Barnabé em uma padaria do centro de São Paulo antes de seu show sobre o personagem Clara Crocodilo de suas composições, fazem da cultura, e da música especificamente um agente de agregação e formação social na história do país.
É dessa forma que escrevo este artigo, com informações vindas de conversas com tantos músicos, pesquisas nas lojas de discos do centro de São Paulo procurando raridades e das informações da excepcional discoteca da rádio na época. Passava dias sem sair do ambiente musical e voltava para casa a cada duas semanas com a cabeça a mil, tentando entender os contextos da música e da cultura que vivenciávamos na ditadura. Com o passar dos anos fui descobrindo como poderia utilizar tais conhecimentos e passei a desenvolver rádios comunitárias e escolares para levar esse conhecimento às pessoas que não tinham muito acesso a estas informações.
Mesmo com algumas sendo escritas há 30, 50 ou 100 anos, muitas músicas que retratavam e constatavam acontecimentos e problemas sociais continuam sendo temas atuais. Desde as bases dos choros de Chiquinha Gonzaga como “Atraente” (1877) aproximando o erudito ao gosto popular, “Ô Abre Alas” (1899) que marcou a cultura brasileira desde então, até a “Canção de Lauro” (1933) feita para a peça de teatro Rude Maria, passando pelo samba “Pelo Telefone” (1916) de Donga e Mauro de Almeida que discorre as ações da polícia com a malandragem da Praça Onze do Rio de Janeiro, as músicas retratam o histórico e crítico de suas épocas. A cronologia deste caminho reúne vários artistas em diferentes épocas, mas com assuntos em comum mesmo sendo separados por um século. Apesar das particularidades de cada tempo, a música foi um termômetro das manifestações sociais de cada década.
Nesta década o Brasil vivenciou conflitos que demonstravam a insatisfação de setores da sociedade com os problemas que vinham enfrentando no país, questões políticas e sociais juntamente com a tensão pós-primeira guerra mundial. A Rádio começa a ocupar um lugar de destaque. O cantor e artista plástico Gastão Formenti foi um dos primeiros artistas, juntamente com Carmem Miranda, a gravar um disco com contrato exclusivo. Sucessos como as 15 toadas ”Ontem ao Luar” (1927), "Anoiteceu" (1927) o maxixe “Boca Pintada” (1928) fizeram muito sucesso nas rádios. Seguindo a mesma toada, o cantor Mário Reis conhecido como O Bacharel do Samba e considerado pela crítica da época como o mais carioca dos cantores por gravar sambas de compositores das escolas de samba como Donga, cantava de forma coloquial contrastando com outros cantores da época, gravou sucessos como "Que vale a nota sem o carinho da mulher?" (1928), “Jura e Gosto” (1928), “Vou à Penha” (1929), foram os principais nomes.
Conhecida como A Época de Ouro, esta década ficou marcada pela mudança do sistema de gravação mecânica para a gravação elétrica, o que permitia o registro fonográfico de vozes de curta extensão, mas cheias de malícia que o samba exigia, além da firmação do rádio. Cantores como Noel Rosa que compôs cerca de 300 irônicas canções, retrata a boemia do Rio de Janeiro em um curto período de 8 anos com os sucessos "Com Que Roupa" (1930), "Gago Apaixonado" (1930), "Fita Amarela" (1932), "Quem Dá Mais" (1933), “Palpite Infeliz” (1935), "Conversa de Botequim" (1935), e "Último Desejo" (1937). O compositor, jornalista, e locutor esportivo Ary Barroso também retratou esse clima boêmio nas suas canções, a exemplo de “Na Baixa do Sapateiro” (1938), e “Aquarela do Brasil” (1939) que mostram o comportamento social da época de forma poética. Além deles, Carmem Miranda uma cantora portuguesa radicada no Brasil, popularizou o samba internacionalmente com “Iaiá, Ioiô” (1930), "Pra Você Gostar de Mim" (1930), “No Tabuleiro da Baiana” (1936), “Na Baixa do Sapateiro” (1938), e mostrou uma cara do Brasil ainda não conhecida.
Com o conservadorismo e a rigidez imperando na década, ao contrário da década passada, o país vive a ascensão do autoritarismo em seu governo e em sua cultura. O Rádio mantinha seu auge e os compositores brasileiros compunham músicas voltadas à poesia saudosa de tempos poéticos. Dorival Caymmi compunha belíssimas músicas, que se tornaram clássicas, de profunda poesia baiana como “Dora” (1945), “Marina” (1947), “O Mar” (1940). Ainda no nordeste Luiz Gonzaga, reconhecido com O Rei do Baião, cantava seus 16 lamentos e sofrimentos do povo esquecido pelos governantes, do nordeste na dura luta contra a sobrevivência com músicas como “Asa Branca” (1947), “Baião” (1946), “Qui nem Jiló” (1949), “Paraíba” (1949), além do cantor Nelson Gonçalves conhecido como “O Cantor das Multidões”, gago de nascença, que cantava temas de casos do cotidiano das cidades como “Noite de Lua” (1943), "Solidão" (1943), "Maria Bethânia" (1945), e "Espanhola" (1946), vendendo mais de 78 milhões de discos, tornando-se assim o segundo maior vendedor da história fonográfica brasileira de todos os tempos. (Aguiar, 2013).
Os anos 50 marcam a efervescência musical no mundo. Surge o Rock and Roll com comportamentos transgressivos e inéditos até então. No Brasil cantoras como Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Elizeth Cardoso e Ângela Maria, intituladas as cantoras do rádio na era de ouro do rádio, cantam canções inspiradoras. Dalva de Oliveira, dona de uma voz potente e com uma extensão que partia do contralto e ia até o soprano (Albin, 2006), marcou época como intérprete em músicas como “Brasil” (1939), “Que será?” (1950), “Ave Maria” (1951). Emilinha Borba uma cantora de marchinhas, chorinhos e também de samba, foi proclamada a Rainha do Rádio por vários anos consecutivos com canções como “Escandalosa” (1947), “Em Nome de Deus” (1955), e “Fevereiro,” (1958). Elizeth Cardoso chamada de A Divina por sua voz limpa, afinada e de repertório autêntico, foi reverenciada em todo o mundo e considerada uma entidade do samba com canções que marcaram época como “Canção da Volta” (1955), “Na Baixa do Sapateiro” (1957), “Até Quando” (1959). Ângela Maria é conhecida pelos grandes críticos, compositores (as) e cantores (as) da música nacional e internacional como a maior e a mais popular voz do Brasil, vendendo mais de 60 milhões de cópias em sua carreira (Faour, 2015) gravou inúmeros sucessos entre eles “Coisas do Passado” (1954), “Pretexto” (1957), “Maria do Cais” (1959). Com a chegada da Bossa Nova (mistura entre samba e jazz), um movimento musical de grande relevância e reconhecimento mundial para a música brasileira, muda o comportamento do brasileiro, como inspiração, e abre perspectivas de relações com o mundo. Artistas como João Gilberto um 17 revolucionário da música brasileira que ao estilizar a riqueza rítmica do samba inovando em uma nova batida de violão com influências jazzísticas, criou a bossa nova e músicas como "Você Esteve Com Meu Bem" (1953), “Chega de Saudade" (1957), "Bim Bom" (1958), “Desafinado” (1959). Tom Jobim, o Antônio Brasileiro, foi maestro, arranjador e compositor além de um grande pianista e considerado um dos maiores expoentes de todos os tempos da música popular brasileira pela revista musical Rolling Stone (Cruz, 2008) e um dos criadores e das principais forças do movimento da bossa nova, compondo clássicos que até hoje são ovacionados como “Tereza da Praia” (1954), “Se Todos Fossem Iguais a Você” (1956), “Canção do Amor Demais” (1958). Vinicius de Moraes foi um diplomata, poeta, compositor e fazia-se de cantor (ele mesmo se classificava como um cantor ruim) além de dramaturgo de muito lirismo, notabilizando-se pelos sonetos, que lhe rendeu o apelido dado por Tom Jobim de poetinha, assim sendo compôs belíssimas canções como "Quando Tu Passas Por Mim (1953), "Loura ou Morena" (1956), "Bom Dia, Tristeza" (1957), "Eu Não Existo Sem Você" (1958), “Eu Sei que Vou te Amar” (1959), "O Nosso Amor" (1959), e "A Felicidade" (1959). Poetas, compositores (as) e cantores (as) dessa época continuaram seus trabalhos pelos anos seguintes e apesar da pouca criticidade política em suas criações, colocaram a música brasileira em um outro patamar.
Conhecida como “Os Anos Rebeldes”, e marcada pelas manifestações sócio-culturais, a década de 60 é referenciada pela consolidação do Rock e seus novos estilos de paz e amor entre os jovens. A invasão britânica através das músicas dos Beatles, seguidos por Stones, The Who, e outros espalha-se pelo mundo e coleciona adeptos que influenciaram gerações. No Brasil forma-se, então, o iê-iê-iê com o Programa dos domingos a tarde da Jovem Guarda. Comandada por Roberto Carlos que viria mais tarde a ser conhecido como rei, fundou as bases para o primeiro movimento de rock feito no Brasil com canções próprias e adaptadas como “Parei na Contra Mão” (1963), “O Calhambeque” (1964), “Nossa Canção” (1966), “Quando” (1967). Erasmo Carlos, o tremendão, parceiro e compositor de Roberto foi o braço direito na jovem guarda muito talentoso escrevendo grandes sucessos como “A Pescaria” (1966), “Gatinha Manhosa” (1966), “Vem Quente que Eu Estou Fervendo” (1967). Wanderléa, a ternura entre dois transviados, dava o tom angelical ao trio e ao programa, gravando canções como “Diga que Você me Quer” (1965), “Esta Noite Eu Sonhei” (1966), e “Pare o Casamento (1966). Esse trio toma conta do comportamento de uma juventude até então amassada pela ditadura. Junto com o Rock vêm também as canções de protesto na MPB de vários artistas, entre eles despontavam nomes como Chico Buarque de Holanda um músico, dramaturgo e escritor e um dos artistas mais ativos na crítica política e na luta pela democratização no país, com as músicas “Pedro Pedreiro” (1966), “Olê, Olá” (1966), “Quem te Viu, Quem te Vê” (1967), “Roda Viva” (1968). Outro artista importante na época foi Geraldo Vandré compositor, poeta e cantor brasileiro com as composições "Fica Mal com Deus", (1964) "Menino das Laranjas" (1964), e a polêmica “Pra Não Dizer que não Falei das Flores” (1968) que se tornou a música oficial do movimento estudantil como resistência e luta contra a ditadura do governo militar sendo censurada durante anos. Zé Keti cantor popular de samba retratou as favelas, a malandragem carioca e os amores neles inseridos, cantando músicas como "Opinião" (1964), “Acender as velas” (1965), além de Caetano Veloso compositor, músico, escritor com uma obra genial de grande valor poético e de conteúdo intelectual pautado na inovação, escreveu obras primas como “Alegria, Alegria” (1967), “É Proibido Proibir” (1968), e o fenomenal Gilberto Gil, compositor talentoso, violonista, cantor além de produtor musical com grande contribuição na música brasileira e mundial com um estilo próprio cercado de várias influências com assuntos que vão da religião, à filosofia, passando por contos e histórias populares, foi nomeado "Artista pela Paz", pela UNESCO (2015) com canções como “Procissão” (1967), “Ensaio Geral” (1967), “Viramundo” (1967), “Domingo no Parque” (1968), teve participações nos Festivais de Música que eram o termômetro da época. Cabe ressaltar que artistas do quilate de Caetano e Gil evoluíram em suas carreiras e foram precursores do movimento Tropicália que julgo ser um dos movimentos mais importantes da história da música e da sociedade.
Um dos movimentos mais expressivos do país, a Tropicália rompeu com os padrões bem comportados da época acontecendo nas artes plásticas, cinema e teatro simultaneamente. Sem poder falar as verdades, os artistas desse movimento utilizaram o deboche e a ironia para se manifestarem sob influências da cultura brega, música erudita, rock psicodélico e pela cultura popular, com misturas geniais de guitarras, violinos e berimbaus além de roupas extravagantes e cabelos compridos. Mostrou ao país e ao mundo artistas como Tom Zé, músico, compositor, e performer, é uma figura original da música e da arte brasileira participando ativamente da Tropicália e com forte influência em seu desenvolvimento escreveu canções como “Sabor de Burrice” (1968), “Parque Industrial” (1968), “Catecismo, Creme Dental e Eu” (1968). Os Mutantes, um dos principais grupos do rock psicodélico5 de São Paulo e do Brasil, e que foi formado por Sergio Dias, pelo multi-instumentista Arnaldo Baptista e pela fantástica Rita Lee Jones, desfilaram novos conceitos e arranjos inovadores em músicas como “Panis Et Circenses” (1968), “Senhor F” (1968), “Não Vá se Perder por Aí” (1969). Gal Costa uma das maiores cantoras do país, esteve ativamente no movimento e se estabeleceu na música brasileira com padrões radicais e totalmente novo para a época com canções como “Quem Me Dera” (1967), “Pulsars e Quasars” (1969), “Divino e Maravilhoso” (1969), além dos já falados anteriormente Caetano Veloso com “Tropicália“ (1968), “Soy Loco Por Ti América” (1968), “Atrás do Trio Elétrico” (1969), e Gilberto Gil com “Procissão” (1968), “Frevo Rasgado” (168), Marginália II” (1968), que em plena ditadura militar enfrentaram os preconceitos e a repressão para fazer um movimento transgressor.
Os anos 70 foram marcados pela busca da liberdade, juventude e quebra de tabus. Um dos estilos mais marcantes da época foi o movimento hippie, difundido e popularizado através de do festival de música Woodstock (USA). O hippie não foi o único estilo a ser influenciado pela música. O movimento punk também de se difundiu através de grupos musicais. No Brasil a música mesclou elementos vindos de fora, em uma fase romântica, e imortalizou, através de grandes canções, as vidas das pessoas. Com o crescimento das casas noturnas, e uma efervescência de ritmos, a música ganha grandes compositores e vários gêneros musicais, e conta histórias de superação, com a continuidade da ditadura, e feitos sociais. Compositores e interpretes como Tim Maia, o suingue negro personificado em um artista e muito importante no início da carreira de Roberto e Erasmo Carlos com músicas como “Azul da Cor do Mar” (1970), “Não Quero só Dinheiro” (1971), Não Vou Ficar” (1971), “Meu País” (1971). Ivan Lins, músico, compositor e instrumentista, foi um crítico voraz da ditadura e um dos músicos mais conhecidos mundialmente por influências músicas do jazz e soul compôs canções como “Madalena” (1971), “Deixa Eu Dizer” (1974), “Palhaços e Reis” (1975), “Antes Que Seja Tarde” (1979). Os Novos Baianos utilizando-se de vários ritmos musicais brasileiros como baião, chorinho, frevo, samba, ijexá, afoxé e também rock, lançando os fantásticos Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, o grande Moraes Moreira (falecido em 13/04/2020 na escrita deste artigo) e gravaram hinos como “É Ferro na Boneca” (1970), “Acabou Chorare” (1972), “Besta é Tu” (1972), “Vamos Pro Mundo” (1974), “Farol da Barra” (1978). Elis Regina conhecida por sua grande competência vocal, musicalidade, presença de palco e de gênio difícil (chamada de pimentinha) foi considerada pela crítica a melhor cantora popular do Brasil entre a década de 60 a 80 e uma das melhores de todos os tempos com canções como “Cais” (1972), “Amor Até o Fim” (1974), “Como os Nossos Pais” (1976), “O Bêbado e a Equilibrista (1979). Mais para o final da década temos o compositor, músico, cantor e letrista Belchior, um estudioso da palavra e de seus significados com as composições “Todo Sujo de Batom” (1974), “Apenas um Rapaz Latino Americano” (1976), “Paralelas” (1977), “Divina Comédia Urbana” (1978). Gonzaguinha, cantor e grande compositor foi caracterizado por uma postura de crítica à ditadura militar, com canções ásperas que lhe rendeu o apelido, no começo da carreira, de “cantor rancor” que teve mais de 50 músicas censuradas em sua carreira e gravou grandes sucessos como “Comportamento Geral” (1973), “Geraldinos e Arquibaldos” (1975), “Com a Perna no Mundo” (1979), “Grito de Alerta” (1979). Também desponta nesse período Milton Nascimento, que fundaria com seus amigos mineiros o importante e fundamental movimento do Clube Da Esquina, um dos mais importantes movimentos da música brasileira, com as músicas “Fé Cega, Faca Amolada” (1975), “Nada Será com Antes” (1976), “Cálice” (1978), “Canção da América” (1979). Luis Melodia que marcou a época com a composição de importantes canções como “Juventude Transviada” (1975), “Canoa, Canoa” (1978), “Presente Cotidiano” (1978). Além destes, tínhamos a continuidade de grandes compositores como Chico Buarque com “Fado Tropical” (1976), “Apesar de Você” (1978), Caetano Veloso com “London, London” (1971), “Chuva, Suor e Cerveja” (1977), Gilberto Gil com “Back in Bahia” (1972), “Tradição” (1979), “Super Homem a Canção” (1979), que emplacaram, de forma certa por palavras tortas (aos olhos da ditadura), a música nacional nos grandes centros do mundo.
Os anos 80 ficaram marcados pela explosão do rock nacional. O país passava por uma transição entre ditadura e democracia e foi palco de músicas com letras contestatórias, liberais e que refletiam a realidade do país naquele momento. Com o movimento “Diretas Já”, em 1984, o sentimento era de revolta e patriotismo e trouxe a possibilidade de fazer músicas mais simples e diretas, já sem a censura, em busca de uma nação mais justa. Os jovens buscavam representação, liberdade de expressão e identidade, em meio a uma revolução sociocultural que estava acontecendo. Com a influência dos gêneros New Wave e Pós Punk que acontecia no exterior, formou-se a famosa “Geração 80”, em
todos os níveis de arte, que carrega em suas músicas letras críticas, arranjos fortes e a liberdade de expressão. Entre Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo surgem bandas com características singulares e que diziam aos brasileiros, principalmente os mais jovens, qual a ordem do momento. Bandas como Ultraje a Rigor que tinha músicas com poemas ácidos e bem humorado como “Inútil” (1983), “Independente Futebol Clube” (1985), “Zoraide” (1985), “Filha Daquilo” (1987), o grupo Barão Vermelho uma das bandas mais influentes fundadas nesta década com sons que falavam aos corações jovens nas músicas “Pro Dia Nasce Feliz” (1983), “Maior Abandonado” (1984), “Maioridade” (1986), “Blues do Abandono” (1987). Legião Urbana, a banda de Brasília que mais falava a linguagem juvenil da época trouxe sons competentes e de linguagem direta com músicas como “Central do Brasil” (1986), “Eduardo e Mônica” (1986), “Faroeste Caboclo” (1987), “Que País é Este” (1987). Paralamas do Sucesso, surgiu como uma banda que misturava ritmos latinos e jamaicanos em seus rocks com as músicas “Vital e Sua Moto” (1983), “Patrulha Noturna” (1983), “Assaltaram a Gramática” (1984), “A Novidade” (1986). Na linha mais pesada vinham as bandas Inocentes, uma das primeiras bandas de punk rock paulistana, que retrata a vida louca de São Paulo com as críticas musicais “Pânico em São Paulo” (1986), “Morrer aos 18” (1987), “Pátria Amada” (1987) “Maldita Polícia” (1988). Na batida do rock bandeirante vem a banda Plebe Rude com músicas que apontam para as incertezas políticas do país a partir da ditadura até os dias atuais e como se comporta o ser humano em meio às dificuldades da vida com as músicas “Até Quando Esperar” (1985), “Brasília” (1985), “Censura” (1987), “Consumo” (1987). Os Titãs, que a princípio era Titãs do Iê Iê Iê, uma banda de rock com músicas de grande força musical, com letras agressivas e críticas sobre a vida, comportamento e atitudes da sociedade paulistana e brasileira, entre elas estão “Marvin” (1984), “Família” (1986), “Polícia” (1986), “Comida” (1987), “Desordem” (1987). A modificação do gênero ocorreu no avanço da década, e com a sua popularização acabou se classificando como MPB, deixando de lado sua força ácida de contestação.
Os anos 90 foram marcados pela chegada da cultura hip-hop e uma mudança estética muito grande. O rock, por exemplo, ainda que tenha avançado em termos criativos ao longo desta década, só se notabilizou com o fenômeno Mamonas Assassinas de músicas humoradas e bem esculachadas como “Chopis Centis” (1985), “1406” (1995), “Cabeça de Bagre” (1995). Na continuidade da carreira os Titãs gravaram “Aluga-se” (1999), “Circo de Feras” (1999), “Estados Alterados da Mente” (1999), e os Paralamas do Sucesso com a música “Luis Inácio (300 Picaretas)” (1995). Com discursos em sintonia com uma juventude sem voz e rosto, estigmatizada nos noticiários, o pessoal do hip-hop paulistano surgiram com os grupos Racionais MC’s um dos primeiros e mais influentes a atingir o público e Thaíde & DJ Hum, que foram capazes de absorver as influências do original americano e adaptá-lo à realidade local da periferia de São Paulo, e que discorreremos sobre mais a frente no Canto Ébano. Em paralelo ao Rap paulistano, veio o funk-hip-hop carioca, surgido do subúrbio/periferia do Rio de Janeiro. O ritmo foi mudando no começo dos anos 90, quando era apenas um exercício de montagens e remixagens com originais estrangeiros, evoluindo para uma cena com artistas como MV Bill, rapper, escritor, ativista do movimento negro e ator com rappers como “Como Sobreviver na Favela” (1999), Atitude Errada” (1999), “Soldado do Morro” (1999), como Planet Hemp, uma banda que tem como premissa a legalização da cannabis6 e de som crítico e pesado, lançou nomes como BNegão e Marcelo D2 e gravou “Mantenha o Respeito” (1995), “Porcos Fardados” (1995), “A Culpa É de Quem? (1995). Gabriel O Pensador chegou trazendo uma linha crítica a política e processos sociais com as músicas “Tô Feliz (Matei o Presidente)” (1993), “Dança do Desempregado” (1997), “Pátria Que Me Pariu” (1997), que saíram dos bailes cariocas para o sucesso nacional. Concomitante ao Rio e São Paulo, surge em Recife o movimento mangue beat que se baseava na mistura das influências do Funk/Rap vindas de fora com ritmos e estilos regionais como o coco, maracatu e o repente. Na frente do movimento estavam Chico Science & Nação Zumbi com as músicas “A Cidade” (1994), “Da Lama Ao Caos” (1994), “Coco Dub (Afrociberdelia)” (1994), “Etnia” (1996), “Manguetown” (1996), Mundo Livre S/A com “Livre Iniciativa” (1994), “A Bola do Jogo” (1994), “Roendo os Restos de Ronald Regan” (1996), que defendiam a sintonia do lamaçal do mangue de Recife com todas as periferias pobres do planeta, uma união humana e estética, que os aproximava das pessoas na mesma condição de desigualdade, mas que enxergava na conexão da globalização uma saída para tudo isso.
No Brasil se destacaram artistas como Marisa Monte, cantora e compositora de voz afinadíssima e de vasta cultura musical, gravou sucessos como “Gentileza” (2000), “O Universo Ao Meu Redor” (2006), “A Alma e a Matéria” (2006), “Infinito Particular” (2006) “O Que Você Quer Saber de Verdade” (2011). Lulu Santos guitarrista, cantor, compsitor e produtor musical, foi lançado por Nelson Mota um grande produtor e descobridor de talentos, emplacou sucessos como “Surreal” (2007), “Se Não Fosse o Funk” (2007), “Singular” (2009) “Luiz Mauricio” (2014). Arnaldo Antunes, inova com sua música poética abstrata e multiartística com cenas, imagens e ruídos sonoros como “Qualquer” (2006), Contato Imediato” (2007), “Envelhecer” (2009), “ “Saiba” (2007). O Rappa que mescla ritmos como rap, rock e reggae, além de letras com forte cunho social com músicas como “Linha Vermelha” (2003), “Monstro Invisível” (2008), “Auto Reverse” (2013).
Na segunda metade da década surgem, para o grande público brasileiro, artistas como Carlinhos Brown, que começou a carreira musical como percussionista para depois se tornar compositor, cantor, arranjador e produtor, além de mediador cultural com a ONG Pracatum fundada no bairro do Candeal, suas músicas retratam a Bahia e seus habitantes e entre elas estão “Aganju” (2003), “Saudação a Oxossi” (2005), “Gente Singular” (2016). Nessa mesma época, surge Seu Jorge, instrumentista, compositor, cantor e ator, que mistura em suas composições ritmos como samba, soul e R&B contemporâneo (rhythms and blues com referências do funk, e hip-hop) em músicas como “Funk Baby” (2002), “Eu Sou Favela” (2004), ”Seu Olhar” (2007), “Trabalhador” (2007). Entra, também, em cena Lenine um músico pernambucano (Salve o talento de Pernambuco!) de grande talento que compõe, canta, escreve, atua, toca diversos instrumentos e produz sons lúdicos e contemporâneos como “Lavadeira do Rio” (2002), “Martelo Bigorna” (2008), “Samba e Leveza” (2008), “Envergo Mais Não Quebro” (2011), além de Zeca Baleiro um cronista musical comportamental natural do Maranhão e de criações musicais estupendas como “Babylon” (2000), “Havy Metal do Senhor” (2000), “Alma Não Tem Cor” (2008), “O Hacker” (2002), com sons antenados com as novas tecnologias e de como eles chegam nos ouvidos atuais. Bandas como Capital Inicial, coadjuvante nos anos 80, que se reciclaram nos anos 2000, grava a música "Saquear Brasília” em 2012 que conclama a reunião de todas as pessoas para tomar Brasília, e Os Titãs, atualíssima desde sua fundação, grava a polêmica e direta “Vossa Excelência” em 2005, criticando os políticos em razão do mensalão. As canções de protestos, de críticas, que retratam cotidianos e comportamentos representam, num primeiro momento a possível intervenção dos músicos e compositores na realidade social do país, contando seus caminhos e descobertas e criando a trilha sonora de um tempo.
As culturas vêm se misturando desde o movimento antropofágico na década de 20 onde foi apresentado, discutido e digerido. Como nossa cultura assimila, liquidifica e expõe (manifesto antropofágico), temos sons indígenas atuais e com tendências bem vanguardistas.
A artista multimídia, MC e rapper Brisa Flow (mapuche) carrega em seu trabalho a força ancestral viva e a pluralidade dos dias atuais. Fala sobre ancestralidade, feminismo, bissexualidade, maternidade, luta e também leveza com vigor e suavidade, sem a culpa de ter de carregar tudo nas costas e ser portadora dessa rima.
Nessa mesma linha a rapper Katu Mirim (akatu mirim) desfila seus versos e levanta a bandeira indígena na sua música. A artista recita a resistência dos povos indígenas e clama a sociedade pela luta à demarcação das terras e pelo bem viver, desconstruindo estereótipos sobre o que é ser índio, fomentados
a centenas de anos.
Além da tradição do samba, o movimento RAP (ritmo e poesia) nasce negro, pobre e periférico, e consequentemente urbano por volta de 1984 no cenário nacional, e continua, neste século, representando a música negra em seu ideal libertário de justiça e igualdade, e por isso, podemos ver o RAP como mais um elemento desta diáspora que só pelos simples fato de ser considerada (ou já foi considerada) uma “sub” cultura ou “cultura marginal” sustenta sua legitimidade, e por ser urbana carrega consigo a africanidade. Desde as reuniões na estação de metrô São Bento de São Paulo pelos até então postulantes a rappers (respirava esses ares também) entre 1984 a 1987 com DJ’s vindos dos bailes funks e dos breaks como Humberto Martins, o DJ Hum, parceiro do até então dançarino de break Thaíde, formando uma das mais duradouras duplas de rappers brasileiros das periferias paulistanas, vieram sons como “Porcos no Poder” (1990) uma ácida crítica aos governantes, “Algo Vai Mudar” (1992) onde o acreditar na justiça social é previsível, “Acredite em Vocês” (1996) fortalecendo o movimento, e “Senhor Tempo Bom” (2000) um hino que desfila o movimento afro brasileiro.
Na base do movimento estão os Racionais MCs com as músicas “Racistas Otários” (1990) criticando o racismo no país, “Pânico na Zona Sul” (1990) retratando a comunidade quando não há lei, “Capítulo 4 versículo 3” (1997) e “Diário de Um Detento” (1997) ambas do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, considerado uma obra prima do RAP nacional, que retratam de forma crua as condições dos presidiários no Brasil, “Negro Drama” (2002) relatando a vida de um negro em São Paulo, “ Cores e Valores” (2014) abordando o racismo mascarado que assombra o país. O Grupo SNJ com os raps “Valorização da Vida” (1998) que diz respeito à importância da doação de sangue, “Lado Triste Real e Brutal” (1998) que relata as mortes de jovens negros nas periferias, “Biografia Feminina” (2000) um hino ao empoderamento feminino, “Cavando Sua Própria Cova” (2000) contando histórias de jovens negros no mundo das drogas e do crime, “O Show Deve Continuar” (2004) de como a luta continua nas periferias, e “Espelho” (2004) uma reflexão das lutas e caminhos a seguir. No mesmo caminho surge o grupo RZO de arranjos inovadores com as músicas “Pobre no Brasil só Leva Chute” (1993) que fala da vida dura dos favelados, “Élcio” (1993) a história de um jovem negro, periférico e de família desestruturada que começa sua trilha pelo crime, “Real Periferia” (2003) o sentimento de racismo e homofobia que sofrem os jovens afro brasileiros e periféricos, “Superstar” (2003) sobre a essência do homem negro, “Luta Cansativa” (2003) que fala sobre a interminável luta pela sobrevivência dos negros no Brasil, “Armas que Matam” (2017) que pregam pelo desarmamento da população, e “Jovens a Frente do Tempo” (2017) exalta a importância do RAP na cultura popular.
Dando continuidade ao movimento estão rappers como Froid, Drika Barbosa, Clara Lima, Tássia Reis, as meninas que marcam seu espaço com os mesmos direitos, Baco Exu do Blues, Rincón Sapiência, Amiri, Emicida uma das maiores revelações do rap e do movimento hip hop do Brasil da década de 2000, entre tantos outros rappers talentosos, além do multi-poeta-musico-rapper Criolo que mistura tendências em todos os aspectos musicais.
O campo da memória foi palco de disputas, assim como os palcos, onde os músicos se apresentavam, se transformaram em campos de luta, e a MPB traz em seu corpo as marcas do seu tempo. (“Hoje”, 1968, Taiguara). Tempo que influenciou gerações além dos versos rebeldes e políticos, pois a música pode ser um hino, uma tomada de posição e um compromisso com a realidade social e política. Assim como a história, a memória histórica é construída socialmente, e ela fica na memória de seu povo e é cantada por gerações. Mas a memória às vezes “falha” e prega peças descabíveis. Muitos talentosos e importantes artistas são esquecidos pelo tempo em suas trajetórias. Por aspectos sociais ou profissionais ficam na berlinda da música popular brasileira, pois a visão crítica da institucionalização da MPB e da construção da memória da sociedade que norteiam o olhar, ficam no campo do fundo, virando um ônus na história da música e se transformando em faixa bônus quando são lembrados.
Soma-se a isso a introdução de músicas estrangeiras em grande escala no país, gerando dificuldades para os músicos nacionais. Devido a essa situação, alguns profissionais do meio artístico, que anteriormente eram lembrados, procuram outros recursos para se manterem, e deixam a música por algum tempo e outros por definitivo caindo assim no esquecimento. Nomes como Elza Soares, eleita pela BBC de Londres a cantora do milênio, Dona Ivone Lara a grande dama do samba, Ciro Monteiro o senhor samba, Clementina de Jesus a síntese do Brasil afro descendente, Jovelina Pérola Negra a pérola negra do samba, Jamelão o grande puxador dos sambas enredos da Escola de Samba Mangueira, Agostinho dos Santos a mais bela voz da MPB, Carlos Cachaça o narrador poético de seu tempo, Wilson Simonal rei do swing e da pilantragem, Orlando Silva o cantor das multidões, Jards Macalé o gênio maldito da música brasileira, Taiguara o guerrilheiro da canção, Chico César o poeta performático da música, Maysa a cantora da alma, Jackson do Pandeiro o rei do ritmo, Pixinguinha o são maestro Pixinguinha. O compositor e cantor Riachão, chamado de o cronista musical, Luis Melodia o gênio irreconhecido, Lupicínio Rodrigues o compositor da dor de cotovelo (termo criado por ele), Itamar Assunção o nego dito beleléu, Ataulfo Alves o lenço branco, Sérgio Ricardo o compositor da UNE (União dos Estudantes), Johnny Alf o genialf, Radamés Gnattali, o arranjador da época de ouro da Radio Nacional, entre tantos outros músicos, não deixaram e não deixam de ser importantes e representativos como interpretes e compositores e estão no contexto social, político e cultural do Brasil, contando fatos e cantando histórias.
A música popular brasileira engloba varias temáticas, e sua utilização na construção social do país, não pode estar restrita a simples análise da letra, mas ao seu papel histórico e, sobretudo, seu poder de construir e transformar idéias e conceitos, ainda contribuindo para a constituição da identidade histórica do cidadão, como construtor de sua identidade. O reconhecimento desta construção é importante para que o conhecimento fornecido, e que seja como um documento histórico, não seja algo fragmentado a uma biografia de compositores, como ocorre atualmente. A abordagem da música como documento histórico a ser estudado em todos os seus aspectos da mesma forma que os demais documentos o são, dão a música, sua devida importância quanto ao seu valor no cenário histórico. A música realmente possui um diferencial como documento histórico devido a sua evolução simultânea com o desenvolvimento da sociedade. A história, tendo a música como suporte, estabelece a compreensão popular dos fatos que construíram o país e a sustentação de sua legitimidade. É perceptível que o assunto ainda é um desafio a ser enfrentado e vencido e que, devido à falta de incentivo, de organização das músicas, entre outras questões que envolvem o difícil trabalho de uma pesquisa histórica específica sobre a MPB como documento histórico e consequentemente como parte da história, não somente cultural, mas social e política acaba por se limitar a pequenas abordagens que não a valorizam como documento. Como a música popular constitui os desejos de seu povo e, apesar de estar atrelada a grande mídia, surge por formas alternativas, e conta as histórias da vida cotidiana que está acontecendo ao nosso lado e que acabamos não percebendo e, consequentemente não conhecendo.
SGANZERLLA, Sérgio. Cantando e contando o Brasil: panorama histórico, político e social através da música. Universidade Federal da Bahia. Escola de Belas Artes. Departamento de Expressão gráfica e tridimensional. Programa de pós-graduação Especialização em Arte Educação, Cultura brasileira e linguagens artísticas contemporâneas. Salvador, 2020, 42p.
Sérgio Sganzerlla
Graduado em licenciatura em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia e especialista em Arte Educação. Atualmente é professor do IPEC (Instituto de Pesquisas Educacionais) onde ministra aulas de Educação e Novas Tecnologias, Linguagens e Comunicação e Arte-Educação, e do SENAC, na formação de Jovens Aprendizes. sergiosganzerlla@gmail.com